Contos




 


Nostalgia
 
A rua era excepcional.  As calçadas eram bem feitas e sem rachaduras, as estradas feitas apenas com paralelepípedos, as árvores cercadas contornavam a rua do inicio ao fim, dando um sombreado repleto de falhas por onde os raios solares escapavam e presenteavam de dourado a calçada sem cor.
Crianças brincavam por todo lado. O cheiro de baunilha que vinha da padaria de duas quadras abaixo era quase tão incrível quanto as casas de madeira branca que havia ali. Eram todas iguais.  Todas tinham uma varanda branca com três degraus largos,  uma porta vitoriana de vidros jateados lateralmente e uma cerca baixa de madeira branca não deixava os gramados verdes passarem para calçada.
Era um bairro calmo, um espaço onde famílias viviam sem se preocupar com seus filhos. Era o ambiente perfeito, o lugar ideal pra se criar proles saudáveis e felizes. 
Todas as manhãs, quando os maridos saiam para trabalhar, ganhavam beijos amorosos das esposas que acordavam uma hora mais cedo e se embrulhavam em seus robes para fazerem cafés para seus maravilhosos esposos.
Depois eles saiam nos seus carros, cumprimentando todos que passavam por ali, observavam satisfeitos seus filhos indo para o colégio a pé. Imaginando o quando incrível era sua vida e quanta sorte todos eles tinham por morarem ali, naquela pequena cidade de SamallTown e não em uma das violentas cidades ao redor.
Naquela manhã, quando Carmilla acordou notou algo diferente.  Ela não saberia dizer o que se alguém lhe perguntasse.  Ela deu uma olhada ao redor. Sentindo-se estranhamente nostálgica aquele dia.  Ela comprou aquela casa quando ficou noiva de Felipe, entretanto, eles haviam rompido há pouco tempo e só o que restou foram lembranças. Boas e ruins. E ela se lembrava de todas elas hoje.
Ela coçou a nuca, antes de largar a xícara de café sobre a pia sem se importar em lavar. Então seguiu rumo à delegacia de policia.  Era divertido – sua piada interna, na realidade – ver a cara das pessoas de lá quando a apresentavam como a delegada. Sofrera preconceito antigamente, óbvio, cidade pequena, mentes pequenas, mas agora... Eles a respeitavam. As mulheres, principalmente. Elas a viam como um exemplo feminista e isso era impagável.
Trancou firmemente a jaqueta ao redor de seu corpo, o outono estava quase no final e as folhas pintavam de vermelho, dourado e cinza as calçadas da rua. O cheiro de baunilha se misturava aos das lareiras antecipadamente acesas e as crianças, agora, preferiam as caronas dos pais á caminhar em conjunto pro colégio.
Andei até o carro policial, deixando a sirene de luz única desligada enquanto dirigia sobre as pedras da calçada em ré, pra contornar e seguir em frente.
- Hei, Irene! – cumprimentou uma vizinha.
- Oi, Mille! – ela quase fez uma careta enorme quando seu apelido foi dito errado. – Como anda o trabalho, hã? Muito movimento?
Ela sorriu quase amarelo pra vizinha. Ela era uma típica dona de casa, todas as manhãs tentava regar seu gramado pra ele não perder a cor, varria as folhas da calçada e fazia a arrumação geral da casa. Ela deveria ter uns vinte e sete anos, elas haviam sido colegas no médio e eram vizinhas agora. Não era uma grande coisa, levando em consideração o tamanho da cidade.
Irene havia sobrevivido muito bem as rugas e a seu filho de sete anos até agora. Seu rosto era tão perfeito quanto foi um dia no colegial, seus cabelos ainda eram loiros e ela ainda tinha uma preferencia abusiva por rosa. Entretanto ela não era tão esnobe quanto costumava ser. Não tanto.
- Sim, claro. – sorri, educada. – Até mais!
- Claro! Continue nos protegendo! – brincou ainda, varrendo a rua.
Vê-la varrer alguma coisa ainda fazia Milla sorrir. Quando que ela imaginaria Irene fazer alguma coisa além de pintar unhas?
Na verdade,  ela jamais imaginou Irene depois da escola. Elas não eram amigas, na verdade, elas mal se falavam. Irene nunca foi maldosa com ela, ela era quieta, não idiota. Não deixava que absolutamente ninguém encrencasse com ela e ficasse por isso mesmo. Era respeitada por isso – isso e porque seu pai era prefeito, mas não era algo que ela gostava de falar.
Porém, Irene era bem malvada com algumas outras pessoas.  Não só ela, claro, Jonathan – atual marido de Irene-, Thiago, Lauren e seu agora não-tão-querido ex noivo, Felipe.
Pensar em Felipe a fez estalar os lábios ruidosamente. Ele a havia abandonado poucos dias antes do casamento, dizendo que era culpa dela, que ela dava mais atenção pro trabalho do que pra ele, duas semanas depois ela descobriu que ele estava tendo um relacionamento com Marisa. Uma colega de trabalho.
Ela não havia aceitado muito bem a noticia.
Carmilla chegou a delegacia dez minutos depois, passou pelas portas de vidro fumê, cumprimentou o funcionário que estava tomando café numa xícara apoiado no balcão de mogno na sala branca que ficava em frente a cadeiras pretas coladas, passou pela sala onde seus oficiais trabalhavam até chegar a seu escritório. Ela não pode deixar de acariciar as letras na porta jateada. Delegada Carmilla Muniz .
Ela sorriu antes de atravessar. A sala dela era comum: uma mesa, um notebook, uma cadeira acolchoada de couro – a que era dela -, duas menores do mesmo material, uma estante com livros do código penal e algumas plantas. Coisas de sua mãe.
- Delegada Muniz, - seu assessor chegou com uma pasta – Encontraram um corpo.
Enrugou o cenho enquanto abria o documento. Lá, havia várias fotos de uma mulher morena, com o rosto extremamente surrado, suas mãos estavam todas cortadas e ela havia perdido todos os dentes da boca. 
- Meu Deus... - não pode deixar de sussurrar.  Olhou a forma da morte – apesar de bem clara pelo sangue, - Quantas facadas? 200? Este número está certo mesmo?
Ele apenas confirmou com a cabeça.
- Algum suspeito? Alguma pista? Onde acharam o corpo?
- Nenhum. Nada. Na escola primária... Era onde ela trabalhava.
Fechou os olhos, perdida. Na escola primaria?
- Certo.  Nada mesmo? Vocês tem certeza? Onde foi o local do crime?
- Lá mesmo. E não tem nada, além de muito sangue.  Acredito que tenha sido ontem à noite.
- Não tinham câmeras?
- Nada. – ele suspirou. – O nome dela era Helena Bassi.
Tamborilou seus dedos sobre a mesa, inquieta. Um crime sem pistas e – possivelmente – sem resolução não era algo que ela gostaria de ter durante seu tempo no cargo.
- Ok. Quem está investigando?
Ele disse o nome de dois dos seus melhores oficiais e só acenou em concordância. Helena Bassi. Por que Helena Bassi levou 200 facadas? Ligou rapidamente seu computador e foi buscar seu nome nos registros criminais. Limpa.
Ok, não foi um crime por tráfico.
Ex-namorado ciumento? Marido? Isso seria a primeira coisa que seus investigadores iriam perguntar. Ela tem inimigos? Eles perguntariam, e a pessoa responderia: Não! Ela é uma pessoa excelente! Todos a adoram. Então eles iriam inquirir: Ela não reclamou de nada essa semana? Você tem certeza? E a pessoa negaria outra vez, argumentando que ela era maravilhosa demais pra ter inimigos.
Mas afinal, que inimigo uma professor de primário pode ter? Um pai infeliz? Isso era ridículo. 
- Pense, pense, pense... – murmurou pra si mesma.  Um assassinato em uma cidade pequena era uma notícia chocante. Principalmente se isso ocorre dentro de uma escola de crianças!
Mas por que ela tinha certeza que choque era exatamente o que o assassino estava procurando?
(...)
Chegou exausta em casa, uma hora depois do que eu deveria chegar. Frustrada e irritada demais pra notar que a empregada havia deixado a porta aberta.
Jogou minhas chaves sobre a mesinha que ficava ao lado da porta, perto de um vaso. Observou que ali havia pó. Que fantástico saber que aquela mulher não andava fazendo seu trabalho direito! A sala era sua exigência. Ela adorava aquele lugar porque era onde passava a maior parte do seu tempo.
Havia dois sofás confortáveis ali. Um ficava em frente a lareira e o outro ficava ao lado, em frente  a esse segundo uma poltrona de um tecido que parecia camurça igualzinha ao tecido dos sofás. Uma mesa de centro de madeira ficava entre eles, com duas velas perfumadas em uma ponta e um porta-retratos de meus pais na outra.
Isso sem falar no tapete felpudo que ela deixava ali.
Não tinha nada mais desestressante do que esfregar seus pés descalços nele.
Antigamente achava essa casa grande demais pra si, mas agora ela achava perfeita.  Largou seu casaco sobre o sofá da sala e subiu rumo ao meu quarto. A cama de casal era centralizada, do lado dois criados mudos, um roupeiro ficava em frente e cortinas brancas iam até o chão.
Jogou seu casaco ali, não podendo deixar de se encarar no enorme espelho que ficava do lado esquerdo da cama. Seu rosto parecia mais cansado que o habitual, seus olhos verdes estavam apagados hoje. Meus cabelos costumavam ir até o fim das minhas costas quando estava na escola, entretanto, agora, havia o cortado até passarem dos ombros.
Suas roupas sempre marcavam seu corpo de forma discreta, seu rosto já não era muito realçado em função do seu cargo quase sempre masculino. O nariz fino e meus lábios cheios já não eram mais notados, e ela tinha um medo interno de ficar masculina demais pra ser notada. Ela não queria passar o resto da minha vida sozinha.
Acabou por achar infernalmente egoísta pensar em sua aparência enquanto lembrava que Helena teria um enterro de caixão fechado em função da dela.
O desgraçado havia arrancado todos os dentes de sua boca e batido tanto nela que ela estava quase irreconhecível. Nenhuma digital, nenhuma testemunha, nenhum fio de cabelo, não houve estupro, não foi filmado. Nada.
Como pode?
Jogou suas roupas no chão, se atirando na cama apenas com uma camisola.  Estava exausta demais pra lutar contra o sono e se alimentar. Ela queria saber o que Diabos estava acontecendo ali!
(...)
- Tudo bem. .. Por favor, fique calmo, senhor.  – pediu, suspirando.   Um homem estava desesperado atrás do assassino de Helena. Ele estava simplesmente furioso pela policia local não ter nada pra fazer.
- Me acalmar? Minha esposa foi torturada e morta a sangue frio! – esbravejou.
Um policial agarrou seu pulso e o obrigou a sair do meu escritório.  Enfiou seu rosto entre as mãos. Que Diabos!
- Delegada, - seu assessor outra vez invadiu sua sala e ela gelou por dentro ao notar a pasta em suas mãos. Má noticia. – uma pessoa sumiu.
- Como sumiu? – ela perguntou, horrorizada.  – Onde?
- Ela estava no supermercado e antes de entrar no carro, desapareceu.
- Como assim? – exasperou. – Alguém viu? Tem câmeras lá! Eu quero as imagens agora mesmo.
- Não tem testemunhas, e nós já pedimos. Os investigadores estão assistindo agora mesmo.
Ela marchou pra fora da sala no momento em que a câmera a mostrava saindo do supermercado e indo até seu carro.
Um calafrio percorreu seu corpo quando viu de quem se tratava. – Essa é Irene! Minha vizinha! – apontou.
Irene caminhava com duas sacolas até o carro, e no momento em que ela chegava a seu Tucson a câmera parava de gravar e girava pro outro lado.
- O que?! – Carmilla quase gritou.  – Eu não posso acreditar! Tem alguma outra?
- Droga! – um policial rosnou.
- Não. Era só essa. – outro explicou.
- Eu quero todas as unidades atrás dela agora mesmo! – mandou. – Imediatamente! Todos vocês!
Ela só conseguia pensar no assassinato da última mulher e no seu filhinho de sete anos.
- Eu não acho que seja necessário... – seu assessor sussurrou por sob o fôlego enquanto apontava pra porta da delegacia.
Carmilla correu até lá e se deparou com uma caixa recentemente aberta.  Um calafrio percorreu seu corpo do inicio ao fim quando viu do que se tratava.
- Quantas horas desde ela ter desaparecido? – perguntou.
- Exatamente oito horas e trinte e sete minutos.
- Foi rápido dessa vez. – ela disse, encarando o corpo inerte de Irene.
Muito Rápido, completou mentalmente.

(...)

- Ela foi esfaqueada também, menos facadas dessa vez.  – a legista explicou – entretanto, seu couro cabelo foi várias feridas abertas... – ela parou. – Arrancaram seus cabelos do mesmo jeito que se carneia ovelhas, Carmilla.
Milla colocou as mãos na boca, furiosa. Indignação não chegava nem perto do que ela estava sentindo agora.
- Ela tinha um filho... – disse, infantilmente. – Um gurizinho de sete anos. Como eu vou falar isso para o pai dele?
A legista suspirou altamente, voltando a tapar o rosto pálido da mulher.
- Foi diferente dessa vez...  – sussurrou Carmilla – Ela certamente não foi morta nessa caixa.  Será que tem alguma ligação com o outro caso?
A legista levantou um dedo, pedindo paciência.  Ela saiu da sala rapidamente e voltou com uma pasta.
- Aqui, veja o formato dos machucados. – ela indicou as facadas em Helena.  – Agora veja esse aqui.  – ela mostrou uma facada lateral em Irene. –  São a mesma faca. Uma faca com uma ponta em vírgula.
- São a mesma pessoa...
A legista sacudiu a cabeça. – A mesma pessoa. 
- Duas mulheres em dois dias! – Carmilla mordeu o lábio inferior – Oh, meu Deus! Um serial Killer?
- Pode ser... E ele tem assessor a instrumentos médicos. Veja isso aqui... – ela mostrou o couro cabeludo de Irene – Foi removido rente a pele. Com uma pequena faca. Um bisturi, talvez. 
- Certo. Muito obrigado, Regina.
Ela saiu dali direto pra o seu assessor. – Procure agora mesmo por pessoas recentemente despedidas do hospital central.
Aquilo era um crime de ódio. Duas mulheres em uma semana... Era absurdo!  Talvez ele tenha sido recentemente despedido e bam! Quer vingança. Quem sabe?
Ele poderia ter raiva de mulheres, porque foi uma mulher quem o despediu... e ele poderia ver simetria no rosto daquelas duas garotas. Talvez elas sejam parecidas com a diretora do hospital... Talvez ele seja um Serial Killer, irritado e indignado, um psicopata recentemente saído de um hospital com a loucura jorrando de seus poros!
- Ninguém. – ele exasperou. – Ninguém há cinco anos, e foi um rapaz que saiu da cidade e mora a 250km daqui.
A onde de desapontamento bateu em Carmilla como um balde de água fria em um inverno.
- Ok, gente, prestem atenção. – pediu, parando em frente aos seus oficiais – Estamos lidando com um cara perturbado. Ele tem conhecimentos médicos, então acredito que tenha trabalhado no hospital. Preciso que entrem em contato com um psicólogo e traga ele pra cá. Quero o perfil psicológico desse cara imediatamente! – ela pausou, encarando suavemente cada um deles. – São duas em dois dias. Quem sabe quem vai ser amanhã? 
Milla saiu da sala de oficiais tão exausta quanto entrou e mal sentou-se na sala, quando seu telefone tocou.
- Carmilla? – era a voz de seu ex-noivo. – Carmilla, onde você está?
- Na delegacia, por quê?
- Carmilla! Eu estou sendo seguido! Estão me seguindo! Eu preciso de ajuda! – sua voz retratava o desespero.
- Quem está seguindo você? – perguntou. – Você está em casa?
- Sim! Eu não sei é u- um barulho alto de vidros quebrando soou ao fundo. – Ah, meu Deus! Carmilla mand-.
A ligação caiu.
Ela irrompeu a porta dos oficiais pedindo reforços enquanto seguia pessoalmente pela casa de seu ex.  Seu coração batucava em seu peito como um bumbo em carnaval, a adrenalina podia ser sentida no ar. Não, por favor, não...
A porta de sua casa foi arrebentada por dois policiais armados, enquanto ela seguia depois, como um revolver em punho, tentando encontrar qualquer espécie de pista, qualquer ruído pra ouvir. Mas nada havia ali.
A sala estava bagunçada, sinais de luta por todo lado.
E ela sabia. Ela tinha certeza, que quem pegou seu ex-noivo, foi a mesma pessoa que pegou as duas últimas mulheres, mas agora, ela queria saber por quê. Por que ele? Por que um homem? Por que o Felipe?
(...)
Três dias depois
Carmilla batia repetidamente sua cabeça contra o encosto de sua cadeira. A xícara de café que seu assessor havia lhe dado estava sobre sua mesa, intacta e fria. O cheiro forte do líquido havia impregnado o lugar, assim como o cheiro de mofo dos livros raramente mexidos da biblioteca.
Ela havia sido ferida. Ferida, não: humilhada.
Há meia hora, o marido de Irene invadiu o lugar, ele costumava ser o seu agradabilíssimo colega de classe, mas agora, era apenas um maleducado que a havia chamado de incompetente e a acusou de não servir pra um trabalho essencialmente masculino.  Lógica não era o forte das mulheres, elas não servem pra isso; disse ele.
Ela estava com raiva, mas pensava que ele estava certo. Afinal, eram três assassinatos sem conclusão!
Seu pai reviraria no túmulo se soubesse disso agora. Se ela desse essa decepção pra ele, mas ela não tinha nem esperanças. Felipe sumiu, e apareceu cerca de um dia atrás sem os órgãos genitais. É, arrancaram o pênis dele! Sem anestesia ou qualquer analgésico. Queriam que ele sentisse dor!
Helena havia perdido os dentes e Irene os cabelos. Tudo isso eram troféus, era claro pra Carmilla agora. Ela só não sabia como relacionar aquilo. Afinal, qual Diabo era a ligação de todos eles? Por que pessoas somem aleatoriamente? Qual é a lógica?
- Outro desaparecimento. – seu assessor chegou dizendo.
- Quem? – ela só sussurrou.
- Thiago Del’Cruz.  - Thiago Del’Cruz...  – ele foi seu colega de sala.
Colega de sala. Colega. Irene era sua colega. Felipe foi seu colega. Thiago era seu colega...
- ENTRA NO REGISTRO AGORA E PROCURA ONDE HELENA ESTUDOU! – ela estourou tão rápido e tão de repente que seu pobre assessor assustou-se antes de correr pra procurar o que ela havia mandado.
Mas ela não tinha dúvidas. Colegas! Colegas era a palavra chave... Thiago, Irene, Felipe. Todos eles foram seus colegas no médio e eles eram maus... Era isso! Ele estava caçando as pessoas que fizeram mal pra ele no colegial.
- Helena Bassi, classe de 1991, turma 231. – o seu assessor chegou dizendo. – Foi sua colega.
- Certo. Procure agora todas as pessoas dessa turma e procure aqueles que têm algum envolvimento judicial, procure aqueles que continuaram na cidade e me mostre uma foto da Helena daquela época.
Cerca de vinte minutos depois ela tinha absolutamente tudo o que pediu.
- Ok, - todos os policiais trabalhavam em volta de seu raciocínio – A pessoa tem que ter sofrido algum tipo de bulling, ele deve ter ido ao psicólogo da escola. - ela disse. – procure aí.
O rapaz seguiu sua busca. Ela olhava pra foto de Helena tentando lembrar quem era ela. Os cabelos escuros iam até os cotovelos em V e seu rosto tinha as maçãs do rosto ligeiramente mais saltadas. Ela tinha grandes olhos castanhos e uma boca bem contornada. Ela era bonita. Mas quem era ela?
- Caroline Morais e Renan Debróide. – o policial falou.
- É isso! – ela quase gritou.  Era como um quebra-cabeça tendo um fim. – é isso! O Renan era taxado de nerd, todos os garotos debochavam dele e ele gostava da Helena! E ela foi a primeira a morrer!  É isso!
O telefone tocou e o Jorge, seu assessor, atendeu.  Ele fez uma careta e veio até onde eles estavam.
- Os investigadores que foram até lá, ligaram... – ele suspirou.  – Tem sangue por toda parte. Acham que é sangue demais...
- Como assim?
- Ele não vai sobreviver, Carmilla. – ele disse. – Porém, tem uma pegada e três digitais.
- Como?  Digitais? Eu quero que examinem agora mesmo!
- Já mandaram os peritos pra lá, teremos acesso em dois dias.
- Não! – ela sobressaltou. – Não temos dois dias. Isso é um Seriall Killer! Ele não vai esperar nós termos suas digitais!
Novamente ela se jogou sobre uma cadeira. Isso estava sendo o Diabo de uma semana!
- Com as provas que temos, nós podemos o intimar.
- Façam isso. – ela mandou, exausta. – Mas procurem se ele trabalhou em algum hospital ou fez algum curso antes. Não precisamos de um outro fiasco.
Ela foi pra casa outra vez mais tarde.  Uma hora mais tarde.
Não, ele não trabalhou em nenhum hospital, ou sequer esteve perto de algum, mas ele era o suspeito mais plausível. Ela falaria com ele assim que tivesse outra prova.
Outra vez caiu quase morta em sua cama, entretanto, antes mesmo de fechar os olhos o telefone tocou.  Ela atendeu sonolenta e irritada pelo corte tão abrupto.
- Acharam o Thiago. Ele está vivo! – o sono passou. – Só que ele está inconsciente.  E... – Jorge arfou – Arrancaram os músculos de seus braços! Isso já passou dos limites.
- Vamos invadir.
30 minutos depois, Carmilla estava na delegacia de novo. E ela estava furiosa.  Ela queria que esse desgraçado que estava matando seus colegas parasse agora! E ela iria arrancar as palavras de sua garganta se fosse necessário.
Eles rodaram pela cidade em busca do endereço do homem que morava sozinho. Além de morar sozinho, ele morava pra fora da cidade, em uma fazendo isolada e liquidada a vinte quilômetros da cidade.
Eles entraram sem problemas pelo portão de madeira da casa. O cadeado estava aberto e cedeu rapidamente pro lado com um único toque. Eles resolveram percorrer os duzentos metros até a casa a pé, pra não alertarem ainda mais o dono da propriedade de suas presenças ali.
O cheiro de noite que vinha do lugar era agradável, e o criquilar dos grilos eram calmamente. Já se podia enxergar a casa de madeira, com uma pequena varanda e com o telhado caindo pra um lado ao longe e a adrenalina corria forte pelo corpo de todos os policiais ali.
Porém, uma coisa quebrou a calma da cena de investigação. Um grito terrível de dor que vinha casa.
- Pode ser uma vítima! Vamos! – Carmilla ordenou.
Todos os policiais correram os cinquenta metros restantes a toda velocidade, invadindo a casa sem nenhuma prudência.
E Carmilla foi surpreendida por uma cena, no mínimo terrível.
Ela foi rápida de prestar atenção em suas obrigações e rapidamente imobilizou a gordinha, a mulher gordinha, que estava sobre Renan. Ela estava tão surpresa da entrada dos policiais ali, que foi facilmente domada.
Estava contornando a pálpebra do homem com um bisturi. Ela lhe arrancaria os olhos fora.
Carmilla sentia raiva e pensou em lhe bater, até que encontrou os mesmos olhos azuis que uma vez ela encontrou há dez anos. Os olhos de Caroline.
Chamaram um ambulância pro lugar, enquanto Carmilla seguia com a mulher em seu carro junto com mais dois oficiais.
Na delegacia, Caroline disse exatamente essas palavras:
“Todos eles mereciam! Cada um deles! Eles debocharam de mim, me fizeram sentir um lixo. Riam de mim por ser gorda e me chamavam de horrorosa, mas quem é horroroso agora? Quem tem o cabelo mais lindo? Quem tem dentes perfeitos? De que eles serviram? Todos morreram do mesmo jeito! E eu espero que eles estejam queimando no quinto dos infernos!”
E ela proferiu essas palavras com tanta raiva que Carmilla verdadeiramente se assustou. Depois, a delegada descobriu que Caroline trabalhava em um hospital na cidade vizinha e foi despedida por roubar comprimidos contra depressão.  E principalmente depois do surto que ela teve no hospital quando viu uma mulher chamada Lauren.
Uma ex-colega sua chamada Lauren.
A demissão, o reencontro, tudo isso influenciou a se tornar uma suposta justiceira. A única coisa que ela nunca reparou, era que as pessoas que a maltrataram no colégio haviam mudado e apenas ela continuou a mesma.
Milla tocou suavemente os cabelos de Thiago, passeando a mão por entre as mechas castanhas.  Ele estava se recuperando, só que seus braços estavam deformados.
Assim como ela sentia-se internamente. Caroline havia se vingado, certo, mas e aí? Ela foi condenada a morte, e...? O que ela fez não tem volta.
Ela matou quatro pessoas e deixou duas feridas.  Pra quê? Porque ela não pode se desprender de uma época da sua vida. Ela nunca soube perdoar, superar.
Ela era uma infeliz que foi condenada a morte.
Mas e daí? O que ela ganhou com isso? Quero dizer... Além de morrer? Nada.  Absolutamente nada.

 
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Murphy x Amor
 

 
Desde o instante em que ele passou por aquela porta eu soube que ele era encrenca.  Não só pelas suas roupas nada profissionais – a calça jeans rasgada nos joelhos e a jaqueta de couro preta, totalmente cheia de tachas -, mas por sua inegável aparência arrasadora de corações.
Claro que ele não sabia que eu era a chefe do departamento de vendas da loja, muito menos que eu não permitia relacionamento entre funcionários ou aquele brilhinho debochado em seus olhos acinzentados não existiria.  Ele havia me chamado de senhor quando entrou e mudou totalmente sua postura séria quando viu que eu não tinha um pênis.
Naquele instante, com aquele ar debochado, eu decidi: Você está marcado pra sair.
No primeiro deslize, na primeira falha, a primeira falta de educação com algum cliente e bum! Game over!
Porém, nada, a partir daquele instante foi o mesmo também. Parece que depois que aquele sorriso despreocupado entrou na minha vida, ela virou de cabeça pra baixo.  Ali naquela sala foi a primeira vez em que brigamos.
- Suas unhas são assim mesmo ou isso é um aplique de bruxa? – ele perguntou, achando graça.
- Não sei, sua roupa é assim mesmo ou você é um sem teto e ninguém me avisou?
Aquela também foi a primeira vez em que eu rebati uma ofensa a alguém sem me incomodar em magoar ou não. Ele ficou feliz em saber que suas implicância funcionavam comigo,  daí passou a usar mais vezes. Mais vezes do que eu posso contar, aliás, e só naquela semana.
Certa vez, eu estava andando pela loja com minha saia de cintura alta e uma blusinha soltinha e o vi dando em cima de uma cliente. Fiquei instantaneamente furiosa.  Aquilo definitivamente não era um comportamento de um atendente! Marchei até lá, decidida a lhe ensinar com quantos fios se faz um lençol egípcio quando derrapei em uma peça de roupa jogada no chão, levando junto comigo a arara inteira de roupas.
Aquela, foi a primeira vez que eu falei um palavrão... Quer dizer, só quando aquele idiota resolveu vir ver como eu estava, se apoiando nos joelhos e me olhando de cima. Ali ele parecia angelical, com uma aréola natural da luz que vinha das lojas da janela.   Estava tão constrangida, irritada e frustrada, que levantei, juntando o resto da minha dignidade e lhe dando um encontrão na passada.
Ali eu conheci uma das 100 leis de Murphy: Mesmo o objeto mais inanimado tem movimento suficiente pra ficar na sua frente e lhe causar uma canelada.
No meu caso, um tombo enorme na frente de todos os meus subordinados.
Outro dia, eu aprendi uma outra lei. Eu estava caminhando calmamente pela loja, ignorando o fato daquele imbecil continuar ali sem nenhum erro e, do nada, uma doida invade gritando aos quatro ventos o quão incompetentes éramos por vender aquele lenço completamente cheio de furos. Eu fiquei escandalizada ao ver a peça que havia sido devolvida na semana passada ali, nossa loja não vendia porcarias.
- Minha senhora, fique calma... Isso será resolvido imediatamente. – assegurei.
Ela nem quis me ouvir, xingou e gritou um pouco mais, então o chefe – o meu chefe – apareceu, atraído pela confusão generalizada que ocorria ali.  Furioso com o fiasco e a propaganda ruim, ele mandou chamar o vendedor que vendeu a peça. Advinha quem era?
Com toda sua lábia e sorrisinho de matador, Anthoni pareceu. Sua jaqueta de couro pendia despreocupadamente em seus braços enquanto ele andava, com aquelas botas que deveriam ser usadas no exercito, até nós.
- Qual é a treta? – perguntou.
Eu senti meu rosto esquentar de vergonha, eu quis chorar de frustração. Meu chefe diria o que de mim? Que eu empregava qualquer um? Que eu era uma inútil?
Mas então, a mulher se desfez em um muxoxo. Eu sequer havia escutado ele falar alguma coisa e ela mudou. Ela simplesmente sorriu pra ele e saíram pra seção dos lenços. Eu olhava chocada a cliente turrona seguir animada pra o outro lado das roupas.
- Ele é demais, não é? – uma senhora comentou pro meu chefe, que tinha uma ruga no cenho.
- Fantástico.  – concordou o homem – Bem se vê que é meu filho.
Eu quase rosnei de puro ódio quando ouvi aquilo. Aprendi uma lei nova de Murphy então: Acontecimentos infelizes acontecem em série. Inevitavelmente.
­
*

Outro dia, eu estava completamente atolada em trabalho na minha sala, quando minha linda caneta caiu da mesa e, ricochetando nos móveis, acabou por ir parar atrás de uma estante da minha sala.  Indignada, peguei outra.  E por incrível que pareça, ela não funcionava. Eu suspirei e contei até dez, por ser obrigada a levantar e pegar a caneta de trás do móvel. Eu tinha que assinar um documento importante pra hoje e a sorte estava me evitando havia dias.
Com a minha saia de cintura alta, apertada e desconfortável, eu me ajoelhei em frente ao armário que, pra minha infelicidade, tinha de ter vários enfeites. Na hora eu achei aqueles pilares em madeira torneada, maravilhosos, entretanto, agora que eu tinha que pegar a caneta por ali, nem tanto.
Suspirei, resignada ao ver que não importava o quanto eu me esticasse, meu braço não passaria por ali e eu estava de quatro no meio da peça. Então, ainda preocupada com o documento, enfiei minha cabeça entre os pilares buscando o maldito objeto.
Mas é claro que eu não mereço a felicidade. É claro que eu sou uma baita azarada. É claro que eu acabei presa.
Bati três vezes com meu maxilar nos pilares antes de definir que eu não sairia dali. Nunca. Eu comecei a entrar em desespero, me sentir claustrofóbica, mas claro, Murphy ainda não estava satisfeito. Eu não tive tempo de agonizar cinco minutos, porque o belíssimo contratado entrou na sala.
Ele olhou impressionado pra minha bunda por cerca de trinta segundos, até eu pigarrear e ele me encarar. Então, ele riu e perguntou por que eu estava daquele jeito.  Eu disse.  Ele riu pelo motivo. Eu o xinguei. Ele ameaçou ir embora. Eu implorei pra ele me ajudar a sair. Ele ficou.
E demorou cerca de duas horas e um marceneiro pra me tirar dali. Eu me sentia tão humilhada quando quase todo o pessoal que atendia – e o que não atendia –  entrou ali pra ver o que acontecia e tinha aquela visão tão privilegiada da minha bunda, que eu pensei em me demitir. Mas não, daí eu só lembrei outra lei de Murphy: Quase tudo é mais fácil de enfiar do que de tirar.
E eu odiava minha vida por isso.  Claro, que odiava bem mais a vida de Anthoni por isso do qualquer outra coisa.  Principalmente porque no dia seguinte, ele chegou com os pedaços da minha estante embrulhados e deu-me de presente.
Eu rosnei furiosa, prestes a lhe jogar aqueles pedaços de madeira na cabeça, mas um cachorro p seguido por uma dona despreocupada entrou na loja e atraiu minha atenção.
É incrível como as pessoas ignoram a placa de “Proibida a entrada de animais” que se coloca na frente da loja. Empinei meu nariz, ignorando completamente o idiota da minha frente e marchei até a senhora baixinha e esnobe e disse na cara:
“É proibida a entrada de animais.” Olhei torto pro bichinho.
“O único animal aqui, minha senhora, é você.” Rebateu na hora.
Eu a encarei incrédula. Minha boca abria e fechava repetidas vezes em busca de palavras, eu não podia crer na falta de educação da cliente a minha frente.
O cachorrinho, ainda por cima, era bravo. Ele rosnava pra todos os que passavam e na hora que sua dona o arrastou entre duas araras de vestidos, caçou um vermelhinho e o mordeu.
 Eu suspirei, reunindo minha paciência e me fui pra lá. “Olha aqui, senhora, se estragar, paga!”
“Eu sei,” ela me olhou de cima a baixo, extrapolando legal na arrogância. “e você sabe que eu posso falar com o gerente.”
Eu puxei o pano do cachorro. “Tenho certeza que ele me entenderia.”
Ela puxou o vestido pra si. “Acho que a razão seria minha. Cliente sempre tem razão.”
Eu puxei a peça pra mim, outra vez. “Sim, mas só quando ele não invade a loja com um cachorro pulguento.”
Ela puxou a roupa novamente. “Meu cachorro não é pulguento.”
“Não, ele só é asqueroso-“ antes de eu terminar, puxei o pano, só que o animalzinho já estressado mordeu minha mão, enquanto buscava a peça. Desesperada eu tentei puxar de volta, mas o que consegui foi uma dor gigantesca e gritos histéricos da dona do animal.
A sombra de Anthoni surgiu meio acima de tudo, ele agarrou o animal e com um movimento estranho acabou o fazendo soltar minha mão. E não só isso, ele acabou fazendo o pequeno yorkshire ficar calminho em suas mãos.
As únicas coisas que acabei ganhando com isso foram pontos, uma anti-tetânica e uma tarde de folga.
Degradante.
No outro dia, com a mão enfaixada, tudo estava um caos.  Anthoni, pra variar, era visto como herói e isso era irritante! Eu estava tão brava, tão brava que pensei em lhe bater. Mas não. Não lhe daria esse gostinho.
Na minha sala, eu pensava em um jeito de mandar o filho do chefe pra rua sem me incomodar. Era impossível! Até porque ele estava querendo ser o queridinho... Só que se eu achava aquilo ruim, não fazia ideia do que viria a seguir.
Meu chefe veio até a minha sala e me deu a noticia mais terrível do mundo!
“Ele será seu aprendiz! Ensine tudo o que você sabe pra ele, porque assim que ele souber tudo o que você sabem ele será gerente de vendas e você será gerente!”
Ok, ser gerente até que era legal, mas ter que ensinar tudo pra ele? Nem tanto.
Então, já no primeiro dia, teve problemas. Ele não sabia como ser ríspido com os funcionários, não tinha pulso pra dar advertências e muito menos coragem pra despedir algum. Podia ser ruim, mas era função do gerente.
Ele não podia sentar na frente de uma mesa e se concentrar em papéis. Ele odiava cálculos e ele ficava tirando com a minha cara de cinco em cinto minutos.  Furiosa, resolvi brigar com ele um pouco pra ver se ele entendia, mas daí uma ideia muito melhor surgiu na minha cabeça: virar o jogo.
“Ô Anthoni,” eu o chamei. “Faz-me um favor?”
Ele veio até mim, com o cenho franzido. “Hm. Faço, sim. Só falar.”
“Me trás um copo d’água.” Pedi.
Ele foi buscar o copo de bom grado, voltou cerca de um minuto depois. Satisfeita, peguei o copo e bebi tudo, enquanto ele observava sentado em uma das cadeiras em frente a minha. Depois de beber tudo, lhe devolvi.
“Pode pôr fora pra mim?”
Detalhe: o lixo estava do meu lado.
Ele aumentou ainda mais a fenda entre seus olhos, pegou o copo e o jogou no lixo do meu lado.  Agradeci cordialmente, sorri e o encarei.
“Pode me buscar mais água, agora?”
Ele me olhou profundamente, entendendo que quem mandava era eu e que eu estava brincando com ele. Juntando seu orgulho, levantou, e foi buscar a água.
E aquela ali, foi a primeira vez em que eu me senti boa. Aliás, boa, não: má. 
E se seguiu assim. Eu mandava, ele buscava, eu mandava, ele buscava. Achava graça, claro, mas não podia deixar de fazer. Ele estava aprendendo as coisas, não posso dizer que não. Ele já sabia se concentrar nos cálculos e eu o vi brigando com um funcionário esses dias.
Ele também já estava se vestindo feito gente, fato que eu comprovei na segunda semana que ele passou comigo. Ele estava de calça jeans e camisa polo, um visual bem casual que lhe caiu muito bem. E era bem estranho pensar sobre isso, principalmente porque hoje havíamos realmente conversado a manhã toda.  E eu me peguei contando a ele minhas vontades, coisas que eu não conto a ninguém.
Entretanto como nem tudo são flores, na segunda semana, brigamos outra vez. Ele não achava justo eu estar querendo despedir um funcionário porque ele vendia pouco. Na realidade, nem eu achava justo, mas eu precisava seguir os procedimentos. Estávamos tentando cortar gastos, então, se ele não estava produzindo estava gastando.
Frustrada, rumei pra minha sala sem nem falar com o funcionário. Aliás, estava com tanta raiva que não quis falar com mais ninguém a manhã inteira.  Não fui pra casa na hora do almoço, e me perguntava por que estava reagindo tão exageradamente àquela situação. Afinal, desde quando eu me importo com ele?
Joguei a cabeça para trás na minha poltrona de couro preto, a deixando descansar enquanto pensava em alguma solução. Não tinha como eu continuar com ele. Não dava pra seguirmos trabalhando no mesmo lugar, não nos dávamos bem, nada bem. 
Incline-me na mesa em busca da minha caneca de café. Ele já devia estar frio e nojento a essas alturas, mas eu precisava do líquido pra ficar em pé o resto do dia. Eu era viciada em cafeína e completamente doida por açúcar. Busquei a xícara e na volta, o primeiro botão da minha camisa branca ficou preso na argola da minha agenda.  Presa, tentei me soltar duas vezes, mas a força com que eu puxei foi muita e o botão voou pra longe.
“Droga!” não dava pra acreditar.
O botão sumiu por entre a mobília e eu de maneira alguma ia me submeter a catar outra coisa depois do episódio da última vez. Só que,  infelizmente, sem aquele botão, minha blusa ficava muito vulgar. Tão vulgar, a ponto de meu sutiã roxo de rendinhas aparecer.
Eu não podia me apresentar assim para o resto da loja. 
Abri minha gaveta em busca de linha e agulha que eu sempre guardava ali. Nada. Levantei e fui procurar no armário da minha linda estante – agora não tão linda... Fantástico como dois pedacinhos de madeira fazem a diferença.  Estiquei-me pra poder apalpar as coisas lá por cima, achei a linha e o pote onde eu guardava a agulha. Porém, quando eu o puxei, acabei puxando um casaco junto. Ele caiu sobre minha cabeça, bagunçando meu cabelo e desfazendo o nó em que eu o prendia antes de eu enfiá-lo pra lá outra vez.
O chacoalhei um pouco mais pra soltar de vez a presilha, peguei a agulha a linha e comecei a costurar. E Murphy me ama, claro, por isso que eu espetei meu dedo já na primeira passada de linha. Rosnei, chateada, antes de colocar o polegar na boca, tentando estancar o sangue. No caminho, acabei arranhando minha boca com a unha. E isso sim que é sorte!
Agora minha boca e meu dedo doíam.
Escorei-me na mesa de mogno pra curtir minha dor física confortável, e nos instante em que estacionei meu traseiro de saia na mesa de madeira, Anthoni passou pela porta já falando o que parecia ser um discurso pronto.
Ele arregalou os olhos quando me viu chupando o dedo, de blusa aberta e escabelada.
Pensei em choramingar, mas quando fiz o bico pra isso, pareceu ainda mais... hm... Sensual? E nesse momento meu chefe passou pela porta. Dei um salto e estufei o peito.    O segundo botão voou, indo parar direto no olho do meu chefe.  Minha blusa se esbraguelou,  deixando minha roupa intima totalmente a mostra, meu chefe gemia de dor e Anthoni ainda olhava pro meu sutiã.
Eu estava horrorizada e uma frase rondava a minha cabeça: “Tudo que começa bem, termina mal. E tudo que começa mal, termina pior ainda.”
Decidida de que Murphy me odiava e que nada no mundo melhoraria minha situação depois de quase nocautear meu chefe com um botão, marchei pra saída da loja, seminua e toda empinada.  Podia estar parecendo uma prostituta agora, mas seria uma prostituta digna!
*
“Por quê?” chorei, batendo repetidas vezes com a mão no meu sofá. “Por quê?”
Eu não podia acreditar que havia saído daquele jeito! Por que eu me demiti? Porque saí pelada de lá? Por que eu sou tão orgulhosa?
Soluçava copiosamente, descontrolada e indignada. Não dava pra acreditar que isso estava acontecendo comigo!
Minha campainha tocou nesse instante. Suspirei e então levantei bem rápido. Podia ser meu chefe, ainda dava tempo... Hm. Corri pra porta. Quando a abri, meu sorriso se desfez. Que chefe que nada, aquele ali era o mala do Anthoni!
Ameacei bater a porta, mas ele enfiou o pé na fresta e me obrigou a ouvir.
“Por que você saiu de lá?” ele quase berrou. “O chefe está sem entender nada! O que deu em você?!”
Furiosa, lhe expliquei o ocorrido, com direito a lhe mostrar meu dedo furado e meu lábio machucado. Óbvio que ele riu da minha cara, não podendo acreditar no quão azarada eu era.
No limite de estresse, parti pra cima dele batendo com meus punhos em seu peito, ele me segurou ainda rindo, em menos de um minuto.
“Me solte, seu brutamontes, bandido, cafajeste!” rosnei, furiosa. “Você acabou com a minha vida!”
“Você está supervalorizando as coisas, Ava!” ele riu. “Não leve a vida tão a sério.”
“Não é supervalorização! Você é o meu carma!”  acusei. “Depois que você apareceu minha virou de pernas pro ar!”
“Ah, então você pensa isso de mim?” ele deu um sorriso torto.
“Não!” me confundi. “Você é um idiota, eu detesto você!”
“E você é paranoica! Eu detesto você!”
“Paranoica? Pelo menos eu levo alguma coisa a sério!” devolvi.
“Você leva tudo a sério!”
“Não é verdade!”
“Claro que é, você se importa mais com o que os outros pensam de você do que você mesma. Você mal se conhece,  trabalha feito louca e está sempre sozinha. Você não vai a lugar algum assim, só vai se magoar futuramente quando chegar a ser gerente da loja antes dos trinta e ver que não tem mais nenhum objetivo de vida!”
A verdade vinda dele, daquele jeito e naquele momento, me deixou mais brava do que eu pude imaginar. Parti pra cima dele outra vez, batendo com punhos, mãos e unhas até ele me segurar outra vez, dessa vez me prendendo contra a parede.
Presa, brava e descontrolada, fiz a única coisa que eu podia fazer: lhe beijei.
E quando eu beijei, notei ser correspondida. Não só no beijo, mas nos sentimentos confrontantes que sentia. Não era só porque ele largou meus pulsos e me abraçou, ou porque eu mesma segurei-lhe fortemente pelo pescoço, mas porque minha vida depois disso mudou.
Literalmente.
No outro dia, depois de jantar com o Anthoni, fui a loja, expliquei pro chefe. E ele riu. Achou engraçado tudo o que houve e disse que tanto eu, quanto seu adorável filho estávamos preparados pros nossos cargos. Fui promovida imediatamente.
Depois,  conversei com os funcionário e com o novo chefe de vendas, tentando mostrar pra eles a situação econômica da loja. Com ajuda deles, desenvolvemos uma promoção que tem tudo pra nos trazer lucros.
Passei a usar calças jeans e camisas polo. Elas são mais práticas, mais discretas e menos rasgáveis. Isso sem contar que elas não têm botões. Às vezes eu também solto meu cabelo e uso vestidos.  Ando mais sociável, agradável até, várias pessoas já me perguntaram o que eu ando tomando, porque estou muito divertida. Acredito que o verdadeiro pensamento delas é com quem estou dormindo, porque não há razão alguma pra esse sorrisinho em meu rosto.
Outras coisas mudaram também, como... O estado civil. Depois disso, eu acabei ganhando um namorado. E bem, não tinha mesmo do que reclamar.
“Foi assim que você conheceu o vovô, vovó?” minha neta acabou me tirando dos devaneios. Lhe dirigi um sorrisinho secreto.
“Sim, meu bem, foi exatamente desse jeito.”


 

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